terça-feira, 17 de março de 2009

A defesa dos imbecis


Não há no mundo raça mais necessária e prolífica que a dos imbecis. Se não tivessem existido homens de gênio, seríamos ainda bárbaros, mas sem os estultos o gênero humano teria acabado há muito tempo. E é um grande argumento a favor da Providência que em todos os tempos sejam precisamente eles os mais numerosos e os mais poderosos. Por vezes decorre meio século sem que tenha aparecido um engenho soberano e fora do comum, mas cada dia que desponta vê crescer e florescer “a infinita multidão dos idiotas”.


Por toda a parte os encontramos, mesmo onde não se esperaria, e não somente em lugares humildes, subalternos e obscuros, mas nos primeiros e mais altos. Os imbecis formam, pode-se dizer, o corpo máximo da humanidade, de modo que estudar o homem é o mesmo que definir a natureza dos medíocres e dos idiotas. “São estultos – dizia o argutíssimo Gracian – todos aqueles que parecem tal e a metade daqueles que o não parecem”. E como a maior parte são reconhecíveis à primeira vista como imbecis mesmo pelos inteligentes mais distraídos, é fácil fazer a conta e chegar a uma soma não muito distante do total dos hóspedes do planeta.


Este cálculo parecerá exagerado e irreverente a quem não repare que o verdadeiro imbecil está, a maior parte das vezes, seguríssimo de não sê-lo. Haverá quem reconhece a própria fealdade, a própria miséria e mesmo as próprias infâmias, mas todos, e mais do que nunca os imbecis, estão seguríssimos de ter tanta inteligência que igualam ou superam a maior parte daqueles que vivem junto deles. Não há imbecil por direito de nascimento que no início do dia não julgue imbecis os seus vizinhos e companheiros e precisamente nestes juízos, e por vezes nestes só, se mostra não imbecil, antes clarividente.

Pois que não se deve crer que os imbecis mais sólidos e certos sejam aqueles pobres insensatos que nada fazem e nada dizem. A grande máquina do mundo humano não tem mecânicos mais ativos e universais que os estultos. Não retidos pela dúvida dos reflexivos, nem pela humildade dos grandes, nem pelo sentido de responsabilidade dos sábios superiores, eles dão prova de uma ufania e de uma jactância que ao mesmo tempo conforta e aterra. Cada país está cheio de imbecis que escrevem, que ensinam, que falam aos povos, que tratam de negócios, que administram e dominam, que fabricam teorias e obras de toda a espécie. Ai de nós, se não existissem! Quem jamais se entregaria a tantas daquelas profissões que aviltam o ânimo e entristecem o engenho? Quem realizaria aquelas inumeráveis tarefas mais ou menos úteis que para um espírito contemplativo, nobre e delicado, trariam insuportável fastídio e repulsa?

Os estúpidos vigorosos são, em suma, extremamente necessários ao andamento da família humana e necessaríssimos, de modo particular, aos não imbecis. Desempenham, em relação a eles, uma função semelhante à dos antigos escravos, assumindo alegremente uma infinidade de cargos, de maçadas e de horrores que os gênios rejeitariam e, mais ainda, servem aos grandes como perspectiva de fundo para lhes oferecer maior relevo e realce. Se todos fossem inteligentes, que mérito teria a inteligência? E, se a maior parte fossem gênios onde iria acabar a voluptuosidade do sentimento de predominância sobre os outros?

É, porém, verdade que a convivência com os idiotas é um contínuo martírio para os que idiotas não são. Ponde um grande na companhia de estultos e será, a maior parte das vezes, detestado, troçado ou, pelo menos, incompreeendido. Toda a sua grandeza não lhe servirá senão para sofrer, para calar ou cingir a máscara do medíocre. Mas o desdém que os estúpidos suscitam nos sábios é sinal de pouca sabedoria, de ingratidão e talvez de inveja. Que culpa têm os imbecis da sua imbecilidade? Mesmo se esta fosse curável com uma iluminação sublimadora, a quem cabe curá-la? Não porventura àqueles que tiveram de Deus o dom de um engenho sublime e luminoso?

Ninguém se zanga, se vê uma criatura aleijada e com o nariz roído por uma chaga e devemos irritar-nos, se nos caem diante dos pés, como a todo o momento acontece, homens com a mente deformada, o coração a esgarçar-se e a alma desabitada? Ouvir as suas falas faz mal, porque a idiotia é irritante e contagiosa: termos muito que fazer é desaconselhável porque um imbecil dificilmente chega a ser generoso: querer contradizê-los é loucura porque são a maioria e, de costume, destemidos e teimosos como a estirpe asinina. Pelo que não restam senão dois caminhos: educá-los ou suportá-los. O primeiro partido é por vezes desesperado; o segundo penosíssimo.

E daqui nasce o rancor desdenhoso que os homens de talento mostram para com a infindável aluvião dos idiotas pululantes e imperantes. Mas na aversão dos inteligentes há, por vezes, um fermento de inveja. E não sem motivos porque, entre os imbecis, mais do que no resto dos homens, se encontram os felizes e os poderosos. Quanto mais inteligência mais dor; logo, quanto menos inteligência mais paz e contentamento. Ninguém está mais seguro de si e satisfeito com o seu próprio ser que um estulto perfeito: dentro dele nem tragédias, nem drama, nem angústias, nem desesperos. A alma dá-lhe pouco aborrecimento porque está quase extinta: a única coisa que a entristeceria é aquela característica que durante a vida natural ele ignora, isto é, a de ser um imbecil.

E não é de espantar se, a maior parte das vezes, os imbecis têm mais êxito no mundo do que os grandes talentos. Enquanto estes são obrigados a combater contra si mesmos e, como se não bastasse, até contra todos os medíocres que detestam por instinto todas as formas de superioridade, o imbecil, vá para onde vá, encontra-se entre os seus pares, entre companheiros e irmãos e é, por natural espírito de grupo, ajudado e protegido. O estulto não enuncia senão pensamentos usuais em forma comum e é por isso aprovado pelos seus semelhantes, que são legião, enquanto o gênio tem o terrível vício de contrapor-se às opiniões dominantes e de querer revolucionar, juntamente com o pensamento, a vida dos mais.

Isto explica por que as obras e as gestas dos imbecis são tão abundantemente solicitadas e admiradas. Os julgadores são, quase todos, da mesma bitola e dos mesmos gostos e aprovam com entusiasmo as coisas feitas ou ditas por qualquer um pouco mais hábil do que eles. O favor quase universal que acolhe os frutos da imbecilidade instruída e temerária vai aumentar a já copiosa felicidade daqueles. A obra do grande, ao contrário, não pode ser entendida e admirada senão pelos seus iguais que são, em todas as gerações, pouquíssimos e só com o tempo estes poucos conseguem impô-la, pelo menos em aparência, à servil estima dos mais. E a maior vitória dos estultos é a de constranger os sábios, bastantes vezes, a agir e falar como estultos, seja para passar com maior tranqüilidade a vida, seja para se salvarem nos dias das epidemias agudas de estultície universal.

Mas não se pode dizer que a inteligência raciocinante e esplendente seja a única escada para a grandeza. Por vezes também o gênio, que é a inspiração intermitente e efêmera, pode coexistir com a estupidez. La Fontaine, em sociedade, dava a impressão de um meio estulto e S. José de Copertino parecia o homem mais obtuso do seu tempo. E, contudo, hoje, mesmo os mais incontentáveis admiram no primeiro um grande poeta e os cristãos veneram no outro um santo milagroso.

Não se deve esquecer, enfim, que os homens de gênio não se tornariam famosos se não conseguissem atrair também a admiração dos ignorantes. O velho Voltaire perguntava-se: “Combien de sots faut-il por faire un public?” Mas depois rejubilava ao saber que as platéias de Paris aplaudiam a sua Zaira e o seu Maomet.

Texto de Giovanni Papini - 1905.

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