O novo acordo ortográfico tem três tipos de problemas. Os dois primeiros são puramente políticos e o terceiro é linguístico. O terceiro problema acaba por revelar um problema de fundo: a fragilidade cultural.
O primeiro problema político é o facto de ser uma mudança artificial da língua, imposta sem ter em conta o uso que nós fazemos dela, violando assim o nosso direito a mandar na nossa própria língua. As mudanças não resultam do acompanhamento de mudanças naturais que se foram verificando no uso que as pessoas fazem da língua, mas apenas da vontade de os seus autores ficarem na história.
O segundo problema é que se baseia numa mentira política: a de que precisamos de unificar a ortografia para fazer da língua portuguesa uma espécie de Quinto Império. Isto é uma mentira política por duas razões.
Em primeiro lugar, porque não é a existência de ortografias distintas, como acontece em muitas outras línguas — inglês, por exemplo — que impede uma língua de se afirmar internacionalmente. A afirmação de uma língua é uma consequência directa de factores como a força económica desse país e a quantidade da sua produção cultural, tanto a científica quanto a popular (pense-se no cinema e nas séries televisivas).
Em segundo lugar, porque as mudanças ortográficas introduzidas não visam a unificação da língua, e nunca visaram, mas apenas impor a visão ortográfica dos seus autores. Assim, ao passo que hoje em dia tanto no Brasil como em Portugal (os restantes países de expressão portuguesa seguem as normas ortográficas portuguesas) se escreve “aspecto”, com a nova ortografia em Portugal passa-se a escrever “aspeto” (porque não pronunciamos o “c”), e no Brasil continua-se a escrever “aspecto” (porque pronunciam o “c”). Além disso, continuaremos nós a escrever “facto”, ao passo que os brasileiros continuarão a escrever “fato”, sendo que para nós um fato é o que para eles é um terno. Pretender unificar ortograficamente uma língua que tem modos de falar marcadamente diferentes com base na fonética é demasiado tolo para se poder levar a sério a ideia de que Houaiss e Malaca Casteleiro procuravam realmente a unificação. O que eles procuravam era a fama -- ainda que póstuma, no caso do Houaiss.
Em conclusão: é uma mentira política afirmar que o acordo ortográfico unifica a língua. Não unifica, e nem o acordo foi genuinamente pensado para unificar coisa alguma.
O terceiro problema é puramente linguístico. O acordo ortográfico está tão mal feito que ninguém sabe como se escrevem afinal certas palavras, se quisermos obedecer ao acordo. Em Portugal, foram já publicados dois dicionários de acordo com o acordo: um dicionário da Texto Editora e outro da sua Nemésis, a Porto Editora. As diferenças entre os dois são gritantes; enquanto um escreve “excepção”, o outro escreve “exceção”; enquanto um escreve “perfeccionista” o outro escreve “perfecionista”. No Brasil as editoras dos dois principais dicionários, o Aurélio e o Houaiss, publicaram pequenos dicionários escolares, mas não as suas versões completas, porque sabem que não sabem como se escrevem certas palavras; e, de facto, lá aparecem várias diferenças entre esses dois pequenos dicionários — nas suas versões completas, as diferenças seriam ainda maiores. Assim, aguardam que a Academia Brasileira de Letras produza uma lista de todas as palavras, no seu Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa”, para saber como escrever certas palavras. Entretanto, a Academia previa para Novembro a publicação do Vocabulário, mas dadas as imensas dificuldades, a sua publicação está prevista para Fevereiro de 2009.
O que fica de tudo isto? Incompetência linguística, oportunismo e mentira política. Estes são os ingredientes do malfadado acordo ortográfico. Razões para desobedecer à lei e continuar a escrever como já sabemos escrever.
Aliás, a hipótese de sucesso do acordo é muito ténue. O mundo hoje não é como em 1943, quando se fez os últimos ajustes ortográficos (depois da desastrosa reforma de 1911). Nessa altura, Portugal era uma ditadura fascista, o Brasil também e os restantes países de língua portuguesa eram colónias do regime fascista. Os jornalistas e editores que desobedecessem à lei seriam presos ou pior. Por outro lado, a esmagadora maioria dos cidadãos portugueses e brasileiros dessa altura não usavam a língua escrita: eram ou analfabetos ou quase. Era por isso fácil mudar a ortografia. Hoje não vejo como isso será possível. Vão proibir-me de escrever como quero no jornal, no blog ou nos meus livros? Como? O Diário da República poderá ser escrito de acordo com a nova ortografia, mas isso é irrelevante se a generalidade dos jornais mais importantes continuarem a usar a ortografia que a generalidade das pessoas quer; e o mesmo acontece com os editores, incluindo os escolares. A ideia de que as crianças vão habituar-se à nova ortografia quando em casa os pais lêem jornais com a antiga é tola. Quem vai querer publicar livros para crianças que lhes ensinem a escrever ao contrário do que se lê nos restantes jornais e livros? Os editores de dicionários, como a Porto Editora, sabem quão polémico é o acordo e por isso não se atrevem a publicar os seus dicionários apenas de acordo com o acordo. Dão a opção ao cliente, porque se não derem essa opção, o cliente vai à procura noutro lado.
O mais triste de tudo isto é o tempo que se perde nestas tolices. Precisamos de dicionários e gramáticas de qualidade e praticamente não os temos. Os dicionários de língua portuguesa, brasileiros e portugueses, têm muitos disparates sempre que falam de filosofia, por exemplo. Além disso, não contemplam muita terminologia filosófica crucial, apesar de se apressarem a incluir todas as tolices que um idiota qualquer diz na rua ou escreve num jornal popular. Aparentemente, a produção académica é para os nossos dicionaristas menos importante do que a produção de disparates linguísticos em jornais diários: aceita-se que “agenda” quer dizer “objectivo político”, à inglesa, mas não temos grafados nos dicionários termos como “mereologia” (a excepção honrosa é o insuperável Aurélio), uma área da filosofia que já era estudada no tempo dos gregos antigos.
Precisamos de produção acadêmica de qualidade, e não de mudanças ortográficas. Ironicamente, os defeitos linguísticos deste acordo ortográfico representam, antes de mais, a fragilidade técnica dos seus autores: precisamente o tipo de problema formativo de base que precisa de ser seriamente encarado. Não com uma “política da língua” — que nada é excepto uma maneira de algumas pessoas ganharem dinheiros públicos e viagens gratuitas — mas com trabalho académico e didáctico de excelência.
Posted by Desidério Murcho filósofo português