Pensamentos, meditações, reflexões e ideias sobre uma nova era de responsabilidades - Veritas gratia Veritatis -
sexta-feira, 4 de novembro de 2016
Razão versus fé, uma dialética da idade média
sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
Ouro dos Alquimistas
(a) O discurso poético versa sobre o possível (dunatoV, dínatos), dirigindo-se sobretudo à imaginação, que capta aquilo que ela mesma presume (eikastikoV, eikástikos, "presumível"; eikasia, eikasia, "imagem", "representação").
Ao ouvinte do discurso poético cabe afrouxar sua exigência de verossimilhança, admitindo que "não é verossímil que tudo sempre aconteça de maneira verossímil", para captar a verdade universal que pode estar sugerida mesmo por uma narrativa aparentemente inverossímil. Aristóteles, em suma, antecipa a suspension of disbelief de que falaria mais tarde Samuel Taylor Coleridge. Admitindo um critério de verossimilhança mais flexível, o leitor (ou espectador) admite que as desventuras do herói trágico poderiam ter acontecido a ele mesmo ou a qualquer outro homem, ou seja, são possibilidades humanas permanentes.
(b) O discurso retórico tem por objeto o verossímil (piqanoV, pithános) e por meta a produção de uma crença firme (pistiV, pístis) que supõe, para além da mera presunção imaginativa, a anuência da vontade; e o homem influencia a vontade de um outro homem por meio da persuasão (peiqo, peitho), que é uma ação psicológica fundada nas crenças comuns. Se a poesia tinha como resultado uma impressão, o discurso retórico deve produzir uma decisão, mostrando que ela é a mais adequada ou conveniente dentro de um determinado quadro de crenças admitidas.
Na retórica antiga, o ouvinte é chamado juiz, porque dele se espera uma decisão, um voto, uma sentença. Aristóteles, e na esteira dele toda a tradição retórica, admite três tipos de discursos retóricos: o discurso forense, o discurso deliberativo e o discurso epidíctico, ou de louvor e censura (a um personagem, a uma obra, etc.). Nos três casos, o ouvinte é chamado a decidir: sobre a culpa ou inocência de um réu, sobre a utilidade ou nocividade de uma lei, de um projeto, etc., sobre os méritos ou deméritos de alguém ou de algo. Ele é, portanto, consultado como autoridade: tem o poder de decidir. Se no ouvinte do discurso poético era importante que a imaginação tomasse as rédeas da mente, para levá-la ao mundo do possível num vôo do qual não se esperava que decorresse nenhuma consequência prática imediata, aqui é a vontade que ouve e julga o discurso, para, decidindo, criar uma situação no reino dos fatos.
(c) O discurso dialético já não se limita a sugerir ou impor uma crença, mas submete as crenças à prova, mediante ensaios e tentativas de traspassá-las por objeções. É o pensamento que vai e vem, por vias transversas, buscando a verdade entre os erros e o erro entre as verdades (dia, diá = "através de" e indica também duplicidade, divisão). Por isto a dialética é também chamada peirástica, da raiz peirá (peira = "prova", "experiência", de onde vêm peirasmoV, peirasmos, "tentação", e as nossas palavras empiria, empirismo, experiência etc., mas também, através de peirateV, peirates, "pirata": o símbolo mesmo da vida aventureira, da viagem sem rumo predeterminado). O discurso dialético mede enfim, por ensaios e erros, a probabilidade maior ou menor de uma crença ou tese, não segundo sua mera concordância com as crenças comuns, mas segundo as exigências superiores da racionalidade e da informação acurada.
Já o ouvinte do discurso dialético é, interiormente ao menos, um participante do processo dialético. Este não visa a uma decisão imediata, mas a uma aproximação da verdade, aproximação que pode ser lenta, progressiva, difícil, tortuosa, e nem sempre chega a resultados satisfatórios. Neste ouvinte, o impulso de decidir deve ser adiado indefinidamente, reprimido mesmo: o dialético não deseja persuadir, como o retórico, mas chegar a uma conclusão que idealmente deva ser admitida como razoável por ambas as partes contendoras. Para tanto, ele tem de refrear o desejo de vencer, dispondo-se humildemente a mudar de opinião se os argumentos do adversário forem mais razoáveis. O dialético não defende um partido, mas investiga uma hipótese. Ora, esta investigação só é possível quando ambos os participantes do diálogo conhecem e admitem os princípios básicos com fundamento nos quais a questão será julgada, e quando ambos concordam em ater-se honestamente às regras da demonstração dialética. A atitude, aqui, é de isenção e, se preciso, de resignação autocrítica. Aristóteles adverte expressamente os discípulos de que não se aventurem a terçar argumentos dialéticos com quem desconheça os princípios da ciência: seria expor-se a objeções de mera retórica, prostituindo a filosofia.
(d) O discurso lógico ou analítico, finalmente, partindo sempre de premissas admitidas como indiscutivelmente certas, chega, pelo encadeamento silogístico, à demonstração certa (apodeixiV, apodêixis, "prova indestrutível") da veracidade das conclusões.
Finalmente, no plano da lógica analítica, não há mais discussão: há apenas a demonstração linear de uma conclusão que, partindo de premissas admitidas como absolutamente verídicas e procedendo rigorosamente pela dedução silogística, não tem como deixar de ser certa. O discurso analítico é o monólogo do mestre: ao discípulo cabe apenas receber e admitir a verdade. Caso falhe a demonstração, o assunto volta à discussão dialética.
É visível que há aí uma escala de credibilidade crescente: do possível subimos ao verossímil, deste para o provável e finalmente para o certo ou verdadeiro. Para Aristóteles, o conhecimento começa pelos dados dos sentidos. Estes são transferidos à memória, imaginação ou fantasia (fantasia), que os agrupa em imagens (eikoi, eikoi, em latim species, speciei), segundo suas semelhanças. É sobre estas imagens retidas e organizadas na fantasia, e não diretamente sobre os dados dos sentidos, que a inteligência exerce a triagem e reorganização com base nas quais criará os esquemas eidéticos, ou conceitos abstratos das espécies, com os quais poderá enfim construir os juízos e raciocínios.
Nessa filosofia, a razão científica surge como o fruto supremo de uma árvore que tem como raiz a imaginação poética, plantada no solo da natureza sensível. E como a natureza sensível não é para Aristóteles apenas uma "exterioridade" irracional e hostil, mas a expressão materializada do Logos divino, a cultura, elevando-se do solo mitopoético até os cumes do conhecimento científico, surge aí como a tradução humanizada dessa Razão divina, espelhada em miniatura na autoconsciência do filósofo. Aristóteles compara, com efeito, a reflexão filosófica à atividade autocognoscitiva de um Deus que consiste, fundamentalmente, em autoconsciência.
A Teoria dos Quatro Discursos é, nesse sentido, o começo e o término da filosofia de Aristóteles. Para além dela, não há mais saber propriamente dito: há somente a "ciência que se busca", a aspiração do conhecimento supremo, da sophia cuja posse assinalaria ao mesmo tempo a realização e o fim da filosofia.
Resumo do texto "Aristótele: os quatros discursos", de Olavo de Carvalho. Blog Sapientian Auten Non Vincit Malitia “A malícia nada pode contra a sabedoria”
sábado, 31 de julho de 2010
Boa e má demagogia?

Nas sociedades modernas, considera-se que os partidos políticos são essenciais à democracia e, na prática, aceita-se que sejam os dirigentes partidários a decidir e não o povo, cuja vontade é ponderada apenas em determinados momentos (como as campanhas eleitorais ou manifestações de rua mais visíveis).
Na Atenas clássica, a situação era consideravelmente diversa. Estava-se perante uma democracia direta e plebiscitária, cujo órgão principal — a Assembleia do povo ou dêmos— reunia todos os cidadãos, num agrupamento de massas de natureza heterogénea. O dêmos, além de possuir a elegibilidade para ocupar os cargos e a prerrogativa de escolher os magistrados, tinha o direito de decidir soberanamente em todos os domínios e de, constituído em tribunal, julgar toda e qualquer causa (pública ou privada), por mais importante que fosse. Daí que o dirigente político de Atenas vivesse em constante tensão e precisasse de convencer a pólis, em cada reunião dos órgãos soberanos, da superioridade da sua política e de que as medidas por ele propostas eram as que melhor serviam os interesses da cidade. Enfim, precisava de ser, por excelência, um demagogo — no sentido neutro da palavra enquanto ‘condutor do povo’ e não com a carga negativa que começara a adquirir logo no último quartel do século V a.C. (precisamente a seguir à morte do grande estadista Péricles) e que ainda hoje acompanha o termo.
Os demagogos — na acepção original — tendem a exercer um papel tanto mais significativo quanto maior for o peso atribuído à intervenção efetiva dos cidadãos nos destinos da sociedade e nas decisões do Estado. Não surpreende, por isso, que na democracia ateniense os demagogos constituíssem elementos estruturantes do próprio sistema e do seu correto funcionamento. Neste sentido genérico, a designação pode inclusive ser aplicada a todos os líderes políticos de Atenas, sem olhar à classe ou pontos de vista, embora esteja sobretudo conotada com os líderes da facção popular e mais progressista, se bem que, em termos de proveniência social, esses mesmos chefes acabassem por ser tradicionalmente recrutados entre as famílias aristocráticas.
Ora foi precisamente em relação ao estrato social de origem dos demagogos que se terá verificado uma considerável evolução após a morte de Péricles (em 429 a.C.). Então e pela primeira vez, o povo escolheu um chefe que não vinha da classe aristocrática — Cléon. A estas personalidades emergentes, que, provindo embora de meios não nobres, atingem o primeiro plano político, os autores antigos e os adversários políticos, de modo geral os aristocratas ou os círculos aristocráticos partidários da oligarquia, passam a chamar demagogos, mas agora em tom depreciativo. E será precisamente sob a ação desses homens e por pressão nociva da Guerra do Peloponeso que Atenas caminhará para um radicalismo cada vez mais violento e intolerante, o qual acabará por ditar o fim da hegemonia política, económica e militar que havia marcado a cidade durante o governo de Péricles. Será errado sustentar que a demagogia, na acepção mais pejorativa, representou o fim do sistema democrático, pois este continuou a existir durante cerca de mais um século, cedendo apenas à política imperialista de Filipe e Alexandre da Macedónia. Mas é também inegável que a ação desses mesmos demagogos abriu caminho a golpes oligárquicos e tirânicos, que lançaram Atenas na senda inelutável da decadência política.
A encerrar esta nota, valerá a pena recordar a forma como o autor da Constituição dos Atenienses, tratado aristotélico composto na segunda metade do séc. IV a.C. (mas não necessariamente por Aristóteles), regista as marcas dessa evolução política (28.1-3):
“Ora enquanto Péricles esteve à frente do dêmos, a situação política manteve-se num cenário favorável; após a sua morte, porém, ficou bastante pior. De fato e pela primeira vez, o dêmos escolheu para seu chefe alguém que não gozava de boa reputação entre as classes superiores, quando, até então, estas haviam estado sempre à frente da vontade popular. Assim acontecera, de fato, desde o início: Sólon havia sido o primeiro chefe do povo, Pisístrato o segundo — e ambos pertenciam ao grupo dos aristocratas e dos notáveis; com o derrube da tirania, foi a vez de Clístenes, da família dos Alcmeónidas, que não teve adversário à altura, depois do exílio de Iságoras e seus apoiantes. Em seguida, Xantipo foi o dirigente do dêmos e Milcíades o chefe dos aristocratas; depois vieram Temístocles e Aristides; a seguir a estes, Efialtes esteve à frente do dêmos e Címon, filho de Milcíades, chefiou a classe dos ricos; finalmente, coube a Péricles a liderança sobre o dêmos e a Tucídides, parente de Címon, a da outra fação. Com a morte de Péricles, o guia dos notáveis foi Nícias, que havia de perecer na Sicília, e coube a Cléon, filho de Cleéneto, a direcção do dêmos. Ao que parece, foi este, com as suas impulsividades, quem mais corrompeu o dêmos: foi o primeiro a gritar na tribuna, a usar termos insultuosos e a discursar com a roupa cingida, enquanto os outros se exprimiam com decoro.”
Delfim Leão - Materia publicada no blog Rerum Natura
domingo, 11 de julho de 2010
Imaginação e imagens mentais

(clicar na imagem para ver em maior dimensão)

Desde os primórdios da filosofia grega, estudiosos da mente têm salientado a importância das imagens mentais no processo de fazer surgir na própria mente entidades que não estão presentes no ambiente. Todos se interessaram pela explicação das imagens mentais (Aristóteles: “já discutimos a imaginação no tratado sobre a Alma e aí chegámos à conclusão que o pensamento é impossível sem uma imagem”).
Há uma certa conexão entre imaginar, pressupor, conjecturar e suspeitar. Mas esta conexão não significa que estes conceitos sejam intermutáveis. E não se pode derivar daí que imaginação, pressuposição, conjectura e suspeição sejam a mesma coisa. Admitimos a faculdade da imaginação, assim como da percepção. Mas não existe a faculdade da pressuposição. E não é líquido que pressupor que uma coisa seja de determinada maneira, per se, seja um exercício da faculdade da imaginação. Isso não significa que as nossas conjecturas, pressuposições e suspeitas sejam resultado de uma imaginação prodigiosa.
Imaginar, por vezes, significa acreditar em coisas que não são verdadeiras, ou pura e simplesmente resulta de criação fantasiosa. Daqui se segue que a imaginação não deve ser tanto uma faculdade cognitiva (que tem de distinguir o verdadeiro do falso), mas mais uma faculdade cogitativa (do pensamento, da reflexão, da meditação). Exercitar a nossa imaginação é envolvermo-nos numa forma de pensar. E muita coisa que é pensável ou imaginável não é necessariamente figurável. Ter uma imaginação prodigiosa não é tanto ter uma excelente aptidão para evocar imagens mentais, mas mais propriamente uma aptidão para pensar em possibilidades. E para isso não é necessário evocar imagens mentais, ou ter uma boa imagística.
O reconhecimento do rosto de uma pessoa não é um processo de comparação entre uma imagem mental retida na memória e a imagem do rosto presenciada naquele momento. O reconhecimento pelo nosso cérebro não se faz da mesma maneira que o reconhecimento mecânico efetuado por um computador, que envolve a comparação de um input com imagens electronicamente armazenadas. E as conclusões do estudo cerebral da imaginação, através da TEP (tomografia por emissão de positrões), ou da RMf (ressonância magnética funcional), não podem ser semelhantes às conclusões do estudo da física de partículas por métodos experimentais semelhantes.
A abordagem ecológica (com a noção de affordance), argumenta que a percepção é um processo direto e contínuo, que ocorre através da exploração do ambiente em colaboração com os outros sentidos. Há ações que o ambiente induz o indivíduo a realizar. A abordagem construtivista (com as teorias da Gestalt e da noção de figura-fundo), defende que a percepção visual do mundo é construída a partir das informações do ambiente e do conhecimento prévio retido na memória. O conhecimento prévio pode fazer transformar, distorcer, ampliar ou descartar aquilo que está sendo percebido.Temos de analisar que diferença há entre ver e visualizar. Muitos cientistas e filósofos abordam estas questões como se nós formássemos imagens mentais no cérebro. Mas percepcionar, seja o que for, não é formar uma imagem na mente de seja o que for. E imaginar o que se percepcionou não é imaginar a imagem do que se percepcionou mas imaginar o que se viu propriamente. Visualizar – é mais parecido com descrever do que com ver. É converter algo abstrato em algo real ou concreto. Ver – consiste mais em perceber ou conhecer por meio dos olhos. Envolve olhar, presenciar e experienciar. De resto, o sistema visual humano opera por processamento de sinais. A retina capta os sinais luminosos e os transforma em impulsos nervosos que depois vão ser captados e processados pelo córtex visual primário (processa somente sinais de intensidade luminosa e fenomenologicamente é ‘como se’ fossem “imagens”); pelo córtex visual secundário, que é um detector de linhas; e pelo córtex visual terciário (processa as frequências da luz e fenomenologicamente é ‘como se’ fossem cores. Não dá a fenomenologia das “imagens”). A cor percebida depende do conteúdo espectral da luz que incide nos objetos. O exercício da fantasia no contexto da criatividade, como quando se inventa um romance ou se pintam quadros mitológicos, não pode ser explicado em termos de uma segunda vivência de impressões anteriores. Não conseguimos ver – ou seja, não existe o ver – uma imagem mental. Não vejo as imagens mentais que tenho. Não existe o olhar para uma imagem mental. Portanto, não faz sentido dizer que podemos verificar uma imagem mental.
sábado, 19 de dezembro de 2009
A natureza do humor

Publicado por Aires Almeida no blog criticanarede.com