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sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Ouro dos Alquimistas


Para Aristóteles, as quatro ciências do discurso tratam de quatro maneiras pelas quais o homem pode, pela palavra, influenciar a mente de outro homem (ou a sua própria). As quatro modalidades de discurso caracterizam-se por seus respectivos níveis de credibilidade:
(a) O discurso poético versa sobre o possível (dunatoV, dínatos), dirigindo-se sobretudo à imaginação, que capta aquilo que ela mesma presume (eikastikoV, eikástikos, "presumível"; eikasia, eikasia, "imagem", "representação").
Ao ouvinte do discurso poético cabe afrouxar sua exigência de verossimilhança, admitindo que "não é verossímil que tudo sempre aconteça de maneira verossímil", para captar a verdade universal que pode estar sugerida mesmo por uma narrativa aparentemente inverossímil. Aristóteles, em suma, antecipa a suspension of disbelief de que falaria mais tarde Samuel Taylor Coleridge. Admitindo um critério de verossimilhança mais flexível, o leitor (ou espectador) admite que as desventuras do herói trágico poderiam ter acontecido a ele mesmo ou a qualquer outro homem, ou seja, são possibilidades humanas permanentes.
(b) O discurso retórico tem por objeto o verossímil (piqanoV, pithános) e por meta a produção de uma crença firme (pistiV, pístis) que supõe, para além da mera presunção imaginativa, a anuência da vontade; e o homem influencia a vontade de um outro homem por meio da persuasão (peiqo, peitho), que é uma ação psicológica fundada nas crenças comuns. Se a poesia tinha como resultado uma impressão, o discurso retórico deve produzir uma decisão, mostrando que ela é a mais adequada ou conveniente dentro de um determinado quadro de crenças admitidas.
Na retórica antiga, o ouvinte é chamado juiz, porque dele se espera uma decisão, um voto, uma sentença. Aristóteles, e na esteira dele toda a tradição retórica, admite três tipos de discursos retóricos: o discurso forense, o discurso deliberativo e o discurso epidíctico, ou de louvor e censura (a um personagem, a uma obra, etc.). Nos três casos, o ouvinte é chamado a decidir: sobre a culpa ou inocência de um réu, sobre a utilidade ou nocividade de uma lei, de um projeto, etc., sobre os méritos ou deméritos de alguém ou de algo. Ele é, portanto, consultado como autoridade: tem o poder de decidir. Se no ouvinte do discurso poético era importante que a imaginação tomasse as rédeas da mente, para levá-la ao mundo do possível num vôo do qual não se esperava que decorresse nenhuma consequência prática imediata, aqui é a vontade que ouve e julga o discurso, para, decidindo, criar uma situação no reino dos fatos.
(c) O discurso dialético já não se limita a sugerir ou impor uma crença, mas submete as crenças à prova, mediante ensaios e tentativas de traspassá-las por objeções. É o pensamento que vai e vem, por vias transversas, buscando a verdade entre os erros e o erro entre as verdades (dia, diá = "através de" e indica também duplicidade, divisão). Por isto a dialética é também chamada peirástica, da raiz peirá (peira = "prova", "experiência", de onde vêm peirasmoV, peirasmos, "tentação", e as nossas palavras empiria, empirismo, experiência etc., mas também, através de peirateV, peirates, "pirata": o símbolo mesmo da vida aventureira, da viagem sem rumo predeterminado). O discurso dialético mede enfim, por ensaios e erros, a probabilidade maior ou menor de uma crença ou tese, não segundo sua mera concordância com as crenças comuns, mas segundo as exigências superiores da racionalidade e da informação acurada.
Já o ouvinte do discurso dialético é, interiormente ao menos, um participante do processo dialético. Este não visa a uma decisão imediata, mas a uma aproximação da verdade, aproximação que pode ser lenta, progressiva, difícil, tortuosa, e nem sempre chega a resultados satisfatórios. Neste ouvinte, o impulso de decidir deve ser adiado indefinidamente, reprimido mesmo: o dialético não deseja persuadir, como o retórico, mas chegar a uma conclusão que idealmente deva ser admitida como razoável por ambas as partes contendoras. Para tanto, ele tem de refrear o desejo de vencer, dispondo-se humildemente a mudar de opinião se os argumentos do adversário forem mais razoáveis. O dialético não defende um partido, mas investiga uma hipótese. Ora, esta investigação só é possível quando ambos os participantes do diálogo conhecem e admitem os princípios básicos com fundamento nos quais a questão será julgada, e quando ambos concordam em ater-se honestamente às regras da demonstração dialética. A atitude, aqui, é de isenção e, se preciso, de resignação autocrítica. Aristóteles adverte expressamente os discípulos de que não se aventurem a terçar argumentos dialéticos com quem desconheça os princípios da ciência: seria expor-se a objeções de mera retórica, prostituindo a filosofia.
(d) O discurso lógico ou analítico, finalmente, partindo sempre de premissas admitidas como indiscutivelmente certas, chega, pelo encadeamento silogístico, à demonstração certa (apodeixiV, apodêixis, "prova indestrutível") da veracidade das conclusões.
Finalmente, no plano da lógica analítica, não há mais discussão: há apenas a demonstração linear de uma conclusão que, partindo de premissas admitidas como absolutamente verídicas e procedendo rigorosamente pela dedução silogística, não tem como deixar de ser certa. O discurso analítico é o monólogo do mestre: ao discípulo cabe apenas receber e admitir a verdade. Caso falhe a demonstração, o assunto volta à discussão dialética.
É visível que há aí uma escala de credibilidade crescente: do possível subimos ao verossímil, deste para o provável e finalmente para o certo ou verdadeiro. Para Aristóteles, o conhecimento começa pelos dados dos sentidos. Estes são transferidos à memória, imaginação ou fantasia (fantasia), que os agrupa em imagens (eikoi, eikoi, em latim species, speciei), segundo suas semelhanças. É sobre estas imagens retidas e organizadas na fantasia, e não diretamente sobre os dados dos sentidos, que a inteligência exerce a triagem e reorganização com base nas quais criará os esquemas eidéticos, ou conceitos abstratos das espécies, com os quais poderá enfim construir os juízos e raciocínios.
Nessa filosofia, a razão científica surge como o fruto supremo de uma árvore que tem como raiz a imaginação poética, plantada no solo da natureza sensível. E como a natureza sensível não é para Aristóteles apenas uma "exterioridade" irracional e hostil, mas a expressão materializada do Logos divino, a cultura, elevando-se do solo mitopoético até os cumes do conhecimento científico, surge aí como a tradução humanizada dessa Razão divina, espelhada em miniatura na autoconsciência do filósofo. Aristóteles compara, com efeito, a reflexão filosófica à atividade autocognoscitiva de um Deus que consiste, fundamentalmente, em autoconsciência.
A Teoria dos Quatro Discursos é, nesse sentido, o começo e o término da filosofia de Aristóteles. Para além dela, não há mais saber propriamente dito: há somente a "ciência que se busca", a aspiração do conhecimento supremo, da sophia cuja posse assinalaria ao mesmo tempo a realização e o fim da filosofia.
Resumo do texto "Aristótele: os quatros discursos", de Olavo de Carvalho. Blog Sapientian Auten Non Vincit Malitia “A malícia nada pode contra a sabedoria”

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Razão versus fé, uma dialética da idade média


Novo texto do Prof. Galopim de Carvalho pubicado no blog Rerun Natura: 

 Situada entre aproximadamente os séculos V e XV, a Idade Média foi um tempo de alastramento do cristianismo e da vida cultural na Europa ocidental, sobretudo através do surgimento de mosteiros da Ordem dos Beneditinos. Seguidores de São Bento de Núrcia (480-547), os monges desta comunidade cristã, iniciadores do movimento monacal, foram os herdeiros da cultura latina e os depositários do essencial do saber do mundo antigo. Estão entre eles os criadores do enciclopedismo, com destaque para Santo Isidoro de Sevilha (570-636) que nos deixou “Etymologiae sive origines”, publicado oito séculos depois, em 1483. Durante este período, o estudo e o ensino transitaram dos mosteiros e conventos para as chamadas escolas catedrais, criadas por toda a Europa, estas que, por seu turno, foram os embriões das universidades nos centros urbanos mais importantes (Salermo, Bolonha, Paris, Oxford, Montpelier, Arezzo, Salamanca, Pádua, Orleães, Roma, Siena, Lisboa, entre muitas outras), privilegiando o ensino de disciplinas como teologia, gramática, retórica, dialéctica (lógica), aritmética, geometria, astronomia, direito, medicina e música. 

 Com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, parte importante do conhecimento produzido e ensinado na Antiguidade sobreviveu graças às traduções que eruditos árabes e judeus fizeram das obras clássicas. Tal permitiu que a alquimia dos chineses, babilónios e egípcios e a filosofia dos gregos reaparecessem na Europa medieval. Foi o tempo da escolástica (do grego scolastikós, instruído), o método de pensamento dominante no ensino nas universidades medievais europeias. Entendida como uma via de harmonização da fé com a razão, a escolástica procurou conduzir o racionalismo e o empirismo filosófico de Aristóteles no interesse da teologia ou, numa outra versão, conciliar o pensamento do Filósofo com a doutrina da Igreja. As obras então publicadas nos campos da filosofia e da teologia revelam a redescoberta das ideias de Aristóteles como correntes do pensamento que conduziram à introdução da lógica no discurso, constituindo uma via interessada em abordar, de forma sistémica, a razão e a verdade da Fé. Na evolução do pensamento científico é necessário recordar o grande filósofo de origem árabe, Abu al-Walid Ibn Munhammad Ibn Ruchd (1126-1198), mais conhecido por Averróis (distorção latina do seu cognome árabe). Nascido em Córdova, na vizinha Espanha, então território muçulmano, é tido como o mais afamado pensador islâmico da Idade Média, viveu muito à frente do seu tempo, abrindo o caminho para o Renascimento e influenciando, significativamente, a filosofia europeia. Intelectual de grande eclectismo, Averróis foi médico, astrónomo, jurista e teólogo. Estudioso do direito canónico muçulmano, foi um dos maiores conhecedores e comentadores do pensamento de Aristóteles, tendo ficado conhecido na história da filosofia pelo cognome de “O Comentador”. Ao afirmar que, “com excepção do sobrenatural, o pensamento se deve sujeitar à força da razão”, este muçulmano ibérico, contemporâneo do nosso rei Afonso Henriques, Teve grande e decisiva influência na evolução da ciência, em geral. Seguidor do aristotelismo, na tradição árabe de recuperação da filosofia grega, Averróis soube fundi-lo com uma parcela de platonismo. Assim, afirmava que, “a par da verdade óbvia do dia-a-dia, observável e aceite pelo povo, e da verdade mística da Fé, defendida e propalada pelos teólogos, há a verdade científica, fruto da razão, podendo estar em desacordo umas com as outras”.

Num tempo em que a teologia dominava sobre a filosofia natural (ciências naturais), as suas ideias alastraram entre a comunidade de estudiosos cristãos da Universidade de Paris, criando uma corrente de pensamento científico puro e independente das crenças religiosas, oposto à envelhecida tese de Santo Agostinho (354-430), segundo a qual havia uma única verdade, a dos santos evangelhos. Para Averróis, uma dada afirmação pode ser filosoficamente (cientificamente) verdadeira e teologicamente falsa e vice-versa. Embora não tenha abordado temas directamente relacionados com as ciências da Terra, a intensa defesa que fez do pensamento científico e da sua independência relativamente aos dogmas da Igreja, deu sustentáculo ao avanço, tantas vezes difícil, levado a cabo, primeiro, por naturalistas e, mais tarde, por geólogos.

A Andaluzia era, então, um dos mais notáveis centros de sabedoria da humanidade. Muitos dos textos dos filósofos gregos salvos das bibliotecas de então foram aqui traduzidos, dando lugar um movimento intelectual notável que acabou por ser aniquilado pela reconquista cristã. Uma tal hegemonia intelectual determinou que, durante os últimos quatro séculos da Idade Média, o árabe foi a língua dominante na ciência embrionária no espaço europeu. Durante parte da sua vida, Averróis contou com a protecção dos califas locais, até que foi desterrado por Abu Yusuf Ya'qub al-Mansur que, na mesma linha das hierarquias do catolicismo, considerou as suas opiniões desrespeitadoras e em desacordo com o Corão. Muito da sua obra acabou também por ser condenada pela Igreja Católica. Tomás de Aquino (1225-1274), que foi um seguidor de Aristóteles e de Averróis, opôs-se, no entanto ao naturalismo exclusivamente racional deste filósofo muçulmano. 

Visto como o mais ilustre professor da Faculdade de Teologia da Universidade de Paris, o filósofo e alquimista dominicano alemão Albrecht von Bollstädt (1206-1280), o Doctor Universalis, é conhecido entre nós por Alberto, o Grande ou Alberto Magno e, também, por Maître Aubert, ou simplesmente Maubert. Lembrado como o maior filósofo e teólogo cristão da Idade Média, Alberto Magno foi também figura de grande prestígio no mundo da ciência do seu tempo, em domínios mais tarde incluídos na química e na mineralogia, que realizou na sua qualidade de alquimista. Após concluir os seus estudos em Pádua e em Paris, Alberto optou pela vida religiosa, ingressando na Ordem de São Domingos, em 1223, tendo chegado à dignidade de Bispo de Regensburgo (Ratisbona).

Tendo estudado o pensamento de Aristóteles e de Averróis, produziu uma das mais importantes sínteses da cultura medieval e defendeu a coexistência pacífica da ciência e da religião, tendo sido o primeiro a aplicar as ideias do fundador do Liceu de Atenas no pensamento cristão. Mas não se limitou a repetir a obra do “Estagirita” (Aristóteles nasceu em Estagira, antiga cidade da Macedónia, na Grécia). Procurou recriá-la com a sua própria experiência e as suas observações. No propósito de subordinar o aristotelismo à fé cristã, o Papa Gregório IX incumbiu Alberto Magno dessa árdua tarefa. Em resultado do seu trabalho, a física e a metafísica, a lógica, a ética, a psicologia e a política de Aristóteles passaram a fazer parte da escolástica. 

Do outro lado do Canal, o franciscano Roger Bacon (1214-1294), filósofo e alquimista inglês, considerado o mais importante cientista da Idade Média, foi pioneiro na estruturação empirismo, termo aqui usado no sentido de método experimental, como forma de validação do conhecimento científico. O seu papel nas ciências da Terra decorre da sua visão sobre a ciência, em geral. O seu nome ficou ainda ligado à matemática (trabalhou na correcção do Calendário Juliano) e, principalmente, à óptica. Estudou em Oxford, tendo sido professor nesta Universidade, bem como na de Paris. Bacon viveu um período onde o influxo de textos dos filósofos gregos revolucionava a vida intelectual do ocidente europeu. Bastante influenciado por eles, foi um dos principais europeus do seu tempo a ensinar a filosofia de Aristóteles. Colocando ênfase considerável sobre os procedimentos empíricos ou experimentais, lutou contra as chamadas ideias inatas. Face a esta sua acção inovadora, ficou na história com o título de Doctor Mirabilis (Doutor Admirável, em latim). Propondo novas metodologias de investigação científica, colocou em causa os métodos de ensino praticados por franciscanos e dominicanos, o que o tornou impopular perante as autoridades eclesiásticas. Consciente de que a escolástica fora concebida como uma via para conciliar a razão com a fé, não deixou de salientar as virtudes desta disciplina medieval, mas apontou-lhe os vícios, em especial os que misturavam os dogmas da Igreja com a ciência, defendendo a separação entre a teologia e o saber científico, numa atitude coincidente com a de Averróis e de outros comentadores árabes de Aristóteles. Esta atitude de Bacon germinou mesmo no seio da Igreja e teve aí seguidores afirmando que a teologia não era uma ciência, uma vez que as suas deduções não assentam em dados concretos, observáveis e experimentáveis, mas em premissas sustentadas e, tantas vezes, impostas pela Fé. Na medida desta nova atitude perante o conhecimento científico, as ideias sobre a origem, a história e a natureza da Terra começam a apontar o caminho que as afastou das crenças ancestrais e as conduziu às preocupações, em primeiro lugar, dos naturalistas e, mais tarde, dos geólogos. Deve-se a Bacon a criação e divulgação do conceito de "leis da natureza", facto importante num período em que estavam ocorrendo modificações no pensamento filosófico, em geral, e na filosofia natural (história naturalRazã), em particular.

Restrições censórias e perseguições movidas pela Ordem Franciscana que, em 1272, proibiu a divulgação dos seus livros, afectaram uma parte importante da sua criatividade intelectual. Esta sua dissidência face à hierarquia e a sua actividade nas práticas alquímicas (entre outras, descobriu a combinação perfeita da pólvora) levaram-no à prisão por mais de uma década.

Contemporâneo de Bacon, o dominicano italiano Tomás de Aquino, distinto aluno de Alberto Magno e autor da influente obra Summa Theologica, ficou na história da filosofia e da teologia com o título de Doctor Communis ou Doctor Angelicus. Considerado um dos principais expoentes da escolástica, foi o criador do Tomismo, a doutrina adoptada oficialmente pela Igreja Católica que, sem deixar de valorizar o pensamento de Platão e o misticismo de Santo Agostinho, visou, sobretudo, integrar a filosofia aristotélica nos textos bíblicos, criando uma espécie de teologia científica.

Na Península Ibérica, ao tempo do rei de Castela e Leão, Afonso X (1221-1284), lembrado como o Sábio ou o Astrólogo, a corte deste monarca foi uma autêntica academia científica no espaço mediterrâneo, tendo marcado um período excepcional no culto da sabedoria, conhecido por “Renascença do século XIII”. Judeus, árabes e cristãos conviveram nesta corte em absoluta harmonia e respeito pela cultura e pela ciência. Este que também foi o imperador eleito do Sacro Império Romano-Germânico (mas que não exerceu esse cargo) realizou a primeira reforma ortográfica do castelhano, língua que adoptou oficialmente, em substituição do latim. 

Não irmanado com qualquer ordem religiosa, ao invés da grande maioria dos intelectuais da Idade Média ligados quer aos franciscanos, como Bacon, quer aos dominicanos, como Tomás de Aquino, o francês Jean Buridan (c.1300-1360), Reitor da Universidade de Paris, foi um clérigo e filósofo liberto das amarras impostas pela religião o que lhe permitiu o avanço em domínios da ciência que marcaram a sua obra. Como professor na mesma Universidade ao longo de uma vida, ensinou e escreveu sobre lógica, metafísica, ética, filosofia natural (história natural), numa metodologia e numa prática entendidas como seculares, isto é, distintas da teologia. Considerado o filósofo francês mais influente, no século XIV e nos dois ou três que se lhe seguiram, desenvolveu o conceito físico de impulso, dando, assim, o primeiro passo no sentido do moderno conceito de inércia, inexistente no pensamento de Aristóteles. Alvo de uma campanha encorajada por Roma e concretizada por partidários do franciscano e escolástico inglês, William Ockham (1285-1347), a obra escrita de Buridan foi proibida pela Igreja Católica e colocada no famigerado Index Librorum Prohibitorum, promulgado pelo Papa Paulo IV, em 1559, com uma versão revista e autorizada pelo Concílio de Trento, em 1563. 

 GALOPIM DE CARVALHO

Na imagem: Santo Agostinho

sábado, 31 de julho de 2010

Boa e má demagogia?



Nas sociedades modernas, considera-se que os partidos políticos são essenciais à democracia e, na prática, aceita-se que sejam os dirigentes partidários a decidir e não o povo, cuja vontade é ponderada apenas em determinados momentos (como as campanhas eleitorais ou manifestações de rua mais visíveis).

Na Atenas clássica, a situação era consideravelmente diversa. Estava-se perante uma democracia direta e plebiscitária, cujo órgão principal — a Assembleia do povo ou dêmos— reunia todos os cidadãos, num agrupamento de massas de natureza heterogénea. O dêmos, além de possuir a elegibilidade para ocupar os cargos e a prerrogativa de escolher os magistrados, tinha o direito de decidir soberanamente em todos os domínios e de, constituído em tribunal, julgar toda e qualquer causa (pública ou privada), por mais importante que fosse. Daí que o dirigente político de Atenas vivesse em constante tensão e precisasse de convencer a pólis, em cada reunião dos órgãos soberanos, da superioridade da sua política e de que as medidas por ele propostas eram as que melhor serviam os interesses da cidade. Enfim, precisava de ser, por excelência, um demagogo — no sentido neutro da palavra enquanto ‘condutor do povo’ e não com a carga negativa que começara a adquirir logo no último quartel do século V a.C. (precisamente a seguir à morte do grande estadista Péricles) e que ainda hoje acompanha o termo.

Os demagogos — na acepção original — tendem a exercer um papel tanto mais significativo quanto maior for o peso atribuído à intervenção efetiva dos cidadãos nos destinos da sociedade e nas decisões do Estado. Não surpreende, por isso, que na democracia ateniense os demagogos constituíssem elementos estruturantes do próprio sistema e do seu correto funcionamento. Neste sentido genérico, a designação pode inclusive ser aplicada a todos os líderes políticos de Atenas, sem olhar à classe ou pontos de vista, embora esteja sobretudo conotada com os líderes da facção popular e mais progressista, se bem que, em termos de proveniência social, esses mesmos chefes acabassem por ser tradicionalmente recrutados entre as famílias aristocráticas.

Ora foi precisamente em relação ao estrato social de origem dos demagogos que se terá verificado uma considerável evolução após a morte de Péricles (em 429 a.C.). Então e pela primeira vez, o povo escolheu um chefe que não vinha da classe aristocrática — Cléon. A estas personalidades emergentes, que, provindo embora de meios não nobres, atingem o primeiro plano político, os autores antigos e os adversários políticos, de modo geral os aristocratas ou os círculos aristocráticos partidários da oligarquia, passam a chamar demagogos, mas agora em tom depreciativo. E será precisamente sob a ação desses homens e por pressão nociva da Guerra do Peloponeso que Atenas caminhará para um radicalismo cada vez mais violento e intolerante, o qual acabará por ditar o fim da hegemonia política, económica e militar que havia marcado a cidade durante o governo de Péricles. Será errado sustentar que a demagogia, na acepção mais pejorativa, representou o fim do sistema democrático, pois este continuou a existir durante cerca de mais um século, cedendo apenas à política imperialista de Filipe e Alexandre da Macedónia. Mas é também inegável que a ação desses mesmos demagogos abriu caminho a golpes oligárquicos e tirânicos, que lançaram Atenas na senda inelutável da decadência política.

A encerrar esta nota, valerá a pena recordar a forma como o autor da Constituição dos Atenienses, tratado aristotélico composto na segunda metade do séc. IV a.C. (mas não necessariamente por Aristóteles), regista as marcas dessa evolução política (28.1-3):
“Ora enquanto Péricles esteve à frente do dêmos, a situação política manteve-se num cenário favorável; após a sua morte, porém, ficou bastante pior. De fato e pela primeira vez, o dêmos escolheu para seu chefe alguém que não gozava de boa reputação entre as classes superiores, quando, até então, estas haviam estado sempre à frente da vontade popular. Assim acontecera, de fato, desde o início: Sólon havia sido o primeiro chefe do povo, Pisístrato o segundo — e ambos pertenciam ao grupo dos aristocratas e dos notáveis; com o derrube da tirania, foi a vez de Clístenes, da família dos Alcmeónidas, que não teve adversário à altura, depois do exílio de Iságoras e seus apoiantes. Em seguida, Xantipo foi o dirigente do dêmos e Milcíades o chefe dos aristocratas; depois vieram Temístocles e Aristides; a seguir a estes, Efialtes esteve à frente do dêmos e Címon, filho de Milcíades, chefiou a classe dos ricos; finalmente, coube a Péricles a liderança sobre o dêmos e a Tucídides, parente de Címon, a da outra fação. Com a morte de Péricles, o guia dos notáveis foi Nícias, que havia de perecer na Sicília, e coube a Cléon, filho de Cleéneto, a direcção do dêmos. Ao que parece, foi este, com as suas impulsividades, quem mais corrompeu o dêmos: foi o primeiro a gritar na tribuna, a usar termos insultuosos e a discursar com a roupa cingida, enquanto os outros se exprimiam com decoro.”

Delfim Leão - Materia publicada no blog Rerum Natura


domingo, 11 de julho de 2010

Imaginação e imagens mentais

Ilusão de movimento periférico
(clicar na imagem para ver em maior dimensão)


Profundidade ambígua

Não obstante se encontrar na literatura uma conexão entre a imaginação e a capacidade de evocar imagens mentais, a verdade é que as imagens mentais constituem uma grande fonte de confusão sobre o assunto da imaginação e da percepção. Mesmo no contexto do nosso senso comum, parece petulante negar a existência das imagens mentais, quando nós, no nosso dia-a-dia, na nossa experiência fenomenológica, passamos a vida a experienciar mentalmente imagens.
Desde os primórdios da filosofia grega, estudiosos da mente têm salientado a importância das imagens mentais no processo de fazer surgir na própria mente entidades que não estão presentes no ambiente. Todos se interessaram pela explicação das imagens mentais (Aristóteles: “já discutimos a imaginação no tratado sobre a Alma e aí chegámos à conclusão que o pensamento é impossível sem uma imagem”).
Há uma certa conexão entre imaginar, pressupor, conjecturar e suspeitar. Mas esta conexão não significa que estes conceitos sejam intermutáveis. E não se pode derivar daí que imaginação, pressuposição, conjectura e suspeição sejam a mesma coisa. Admitimos a faculdade da imaginação, assim como da percepção. Mas não existe a faculdade da pressuposição. E não é líquido que pressupor que uma coisa seja de determinada maneira, per se, seja um exercício da faculdade da imaginação. Isso não significa que as nossas conjecturas, pressuposições e suspeitas sejam resultado de uma imaginação prodigiosa.
Imaginar, por vezes, significa acreditar em coisas que não são verdadeiras, ou pura e simplesmente resulta de criação fantasiosa. Daqui se segue que a imaginação não deve ser tanto uma faculdade cognitiva (que tem de distinguir o verdadeiro do falso), mas mais uma faculdade cogitativa (do pensamento, da reflexão, da meditação). Exercitar a nossa imaginação é envolvermo-nos numa forma de pensar. E muita coisa que é pensável ou imaginável não é necessariamente figurável. Ter uma imaginação prodigiosa não é tanto ter uma excelente aptidão para evocar imagens mentais, mas mais propriamente uma aptidão para pensar em possibilidades. E para isso não é necessário evocar imagens mentais, ou ter uma boa imagística.
O reconhecimento do rosto de uma pessoa não é um processo de comparação entre uma imagem mental retida na memória e a imagem do rosto presenciada naquele momento. O reconhecimento pelo nosso cérebro não se faz da mesma maneira que o reconhecimento mecânico efetuado por um computador, que envolve a comparação de um input com imagens electronicamente armazenadas. E as conclusões do estudo cerebral da imaginação, através da TEP (tomografia por emissão de positrões), ou da RMf (ressonância magnética funcional), não podem ser semelhantes às conclusões do estudo da física de partículas por métodos experimentais semelhantes.
A abordagem ecológica (com a noção de affordance), argumenta que a percepção é um processo direto e contínuo, que ocorre através da exploração do ambiente em colaboração com os outros sentidos. Há ações que o ambiente induz o indivíduo a realizar. A abordagem construtivista (com as teorias da Gestalt e da noção de figura-fundo), defende que a percepção visual do mundo é construída a partir das informações do ambiente e do conhecimento prévio retido na memória. O conhecimento prévio pode fazer transformar, distorcer, ampliar ou descartar aquilo que está sendo percebido.Temos de analisar que diferença há entre ver e visualizar. Muitos cientistas e filósofos abordam estas questões como se nós formássemos imagens mentais no cérebro. Mas percepcionar, seja o que for, não é formar uma imagem na mente de seja o que for. E imaginar o que se percepcionou não é imaginar a imagem do que se percepcionou mas imaginar o que se viu propriamente. Visualizar – é mais parecido com descrever do que com ver. É converter algo abstrato em algo real ou concreto. Ver – consiste mais em perceber ou conhecer por meio dos olhos. Envolve olhar, presenciar e experienciar. De resto, o sistema visual humano opera por processamento de sinais. A retina capta os sinais luminosos e os transforma em impulsos nervosos que depois vão ser captados e processados pelo córtex visual primário (processa somente sinais de intensidade luminosa e fenomenologicamente é ‘como se’ fossem “imagens”); pelo córtex visual secundário, que é um detector de linhas; e pelo córtex visual terciário (processa as frequências da luz e fenomenologicamente é ‘como se’ fossem cores. Não dá a fenomenologia das “imagens”). A cor percebida depende do conteúdo espectral da luz que incide nos objetos. O exercício da fantasia no contexto da criatividade, como quando se inventa um romance ou se pintam quadros mitológicos, não pode ser explicado em termos de uma segunda vivência de impressões anteriores. Não conseguimos ver – ou seja, não existe o ver – uma imagem mental. Não vejo as imagens mentais que tenho. Não existe o olhar para uma imagem mental. Portanto, não faz sentido dizer que podemos verificar uma imagem mental.
F. Dias no blog A Fisga (http://ferndias.blogspot.com/)

sábado, 19 de dezembro de 2009

A natureza do humor


O que é o humor? O que nos faz rir no humor? Vários filósofos tentaram responder a estas perguntas. Deixo aqui apenas um esboço de cada uma das três principais teorias filosóficas sobre a natureza do humor: a teoria da superioridade, a teoria da incongruência e a teoria da libertação.

Antes disso, uma nota: há filósofos que, em bom rigor, não falam do humor, mas do riso, que são coisas diferentes. Talvez não haja humor sem riso, mas há certamente riso sem humor, o que significa que o riso talvez seja uma condição necessária do humor, mas não suficiente. Por exemplo, podemos rir de alegria porque nos saiu a lotaria, o que não descreveríamos como uma situação humorística. De qualquer modo, muito do que se possa dizer acerca do riso também é aplicável ao humor.

A teoria da superioridade é a mais antiga. Começa a ser delineada por Platão e Aristóteles, mas é a Hobbes que costuma ser associada. Hobbes defende que o humor consiste na expressão de superioridade em relação ao objecto do nosso riso. A ideia é que o humor elege sempre alguma vítima ou aponta para algum defeito alheio, como é o caso das anedotas sexistas e racistas. Um exemplo disso são as anedotas sobre alentejanos, como a seguinte:

Sabes quantas vezes um alentejano se ri de uma anedota? Três vezes: a primeira é quando lha contam, a segunda é quando lha explicam e a terceira é quando a compreende.

Mesmo quando o humor, como frequentemente acontece, funciona como uma espécie de denúncia social ou política, se está a exprimir alguma forma de superioridade moral, intelectual ou outra.

Há várias objeções a esta teoria. Uma das mais fortes é que, se a teoria fosse verdadeira, não faria sentido rirmo-nos de nós próprios. Mas há humor em que nos rimos de nós próprios ou do grupo a que pertencemos.

A teoria da incongruência, associada a Kant e a Schopenhauer, defende que o riso é a expressão de uma incongruência percepcionada por aquele que ri. Isto acontece, por exemplo, quando somos surpreendidos com alguma impossibilidade lógica que tomamos como natural; ou quando somos tentados por ideias irrelevantes; ou quando são geradas expectativas que conduzem a um impasse; ou quando somos persuadidos a aceitar o que aparentemente é inaceitável. Uma boa ilustração é a anedota, bem conhecida entre filósofos, do amante adepto da teoria comportamentalista (ou behaviourista, como também se diz):

Depois de ter acabado de ter relações sexuais com a sua namorada, o comportamentalista diz: tu gostaste, e eu?

Uma objecção a esta teoria é que há incongruências que não são percepcionadas como humorísticas. Assim, a incongruência só por si não explica porque razão certas histórias ou situações são humorísticas.

A terceira teoria, a da libertação de tensão, é desenvolvida pelo filósofo evolucionista Herbert Spencer e sobretudo por Freud. Eles defendem que o humor é um escape libertador de tensão. Para Freud, o humor tem uma função muito semelhante à dos sonhos: libertar instintos e desejos sexuais e agressivos socialmente reprovados e reprimidos. Assim, a tensão gerada pela repressão social desses instintos é simbolicamente libertada através das piadas e anedotas. Daí o facto de as anedotas de cariz sexual serem tão populares:

- Então o meu caro amigo o que faz na vida?

- Olhe, trabalho onde os outros se divertem.

- O quê, num parque de diversões?

- Não só num, mas em vários: sou ginecologista.

Freud admite que há outro tipo de piadas, que dependem apenas da técnica como são construídas ou apresentadas. Mas chama "inocentes" a essas piadas, prestando-lhes pouca atenção.

A teoria de Freud parece ser refutada pelos factos. De acordo com Freud, as pessoas que gastam mais energias a reprimir os seus instintos e desejos agressivos e sexuais seriam as que mais deviam rir com as anedotas. Contudo, há investigações empíricas que apontam precisamente no sentido contrário: as pessoas com uma educação mais austera e punitiva em termos sexuais não são os que mais sentido de humor costumam ter.

Será que há mesmo uma essência ou natureza do humor?
Publicado por Aires Almeida no blog criticanarede.com