Para que servem os estudos humanísticos? A pergunta, embora pareça absurda, tem a sua pertinência quando, por todo o mundo e também em Portugal, se parece assistir, cada vez mais, à redução das Faculdades de Letras ao estatuto de simples e utilitárias escolas de línguas.
Para quê a literatura? De que serve? Para quê a História, a Arte, a Filosofia? Como verme daninho, o utilitarismo estreito e o economicismo, a propósito e a despropósito, infiltram-se insidiosamente no espírito dos burocratas da Educação e dos empresários da investigação e tudo corroem, como cancro incontrolável e sinistro. Cada professor ou investigador tem que apresentar resultados, medidos em número de papers por ano ou por semestre ou por década... É tudo submetido a um critério economicista que rejeita vigorosamente o desperdício e a aparente inutilidade do lazer, da arte e da cultura.
Há que planear, orientar, organizar, medir, avaliar. O lazer, o divagar, o viver cinco, dez anos teimosos a ruminar uma ideia ou uma hipótese que pode eventualmente não resultar – é anátema. Einstein desperdiçou os seus últimos trinta anos a ruminar obstinadamente uma ideia que não deu, mas, num único ano – 1905 – produziu quatro papers que revolucionaram a ciência moderna. Não ganhou com isso o direito de gastar o resto da vida perseguindo, sem ser chateado pelos contabilistas do talento, as ideias que melhor lhe parecessem, mesmo que se revelassem infrutíferas? Princeton, na América, deu-lhe esse direito ao desperdício, que os organizadores, hoje à solta por todo o lado, parecem não prezar por aí além. Foi o fundamentalismo da investigação exclusivamente orientada – para objetivos previamente definidos pelas empresas – que ia dando cabo da investigação científica nos Estados Unidos. E foi a clarividência de empresas como a Bell – não se importando de valorizar o tempo desperdiçado em divagações pelos seus cientistas – que finalmente a salvou. As grandes descobertas da ciência não se fizeram quase nunca por cientistas corretamente arregimentados e bem vigiados por burocratas e organizadores que sabem melhor como se deve proceder. Para esses organization men, Einstein e Newton não passariam de bloody wasters com algum gênio, sim, mas sem o sentido da produtividade e do bom aproveitamento que a disciplina da empresa exige e promove.
Compreende-se cada vez menos que as grandes ideias exigem disponibilidade de tempo, teimosia e o direito ao fracasso, isto é, à eventualidade de maus resultados que podem ser apenas o prefácio de grandes triunfos. O mesmo Newton que não descobriu a pedra filosofal e perdeu tempo com ocultismos e alquimias de carregar pela boca, foi, como físico e astrônomo, o maior inovador que o mundo já viu. Uma coisa deve fazer esquecer a outra e não precisamos, para coisa nenhuma, dos contabilistas do tempo desperdiçado.
É esta mentalidade estreita dos contabilistas que está também na origem de se andar a desprezar o valor eminente das humanidades que, até, por acaso, podem ter utilidades inesperadas. Vou contar uma história: nos tempos em que desempenhava funções seniores, no domínio dos petróleos, e frequentei alguns interessantes cursos de gestão de empresas, lembro-me de ter lido um interessantíssimo livro sobre estas matérias, no qual se contava uma história edificante. O responsável de topo de uma grande indústria que empregava vários engenheiros, no domínio da investigação que estava na origem da produção dos principais produtos que a empresa lançava no mercado, tomou um dia consciência de que os seus engenheiros, que eram afinal os principais responsáveis pela saúde e perpetuação do negócio, nunca ascendiam ao topo do organograma. Ganhavam bem, eram devidamente apreciados, recebiam bons bônus anuais, mas os lugares de topo iam sempre para os senhores do marketing ou do administrative. O engenheiro era considerado um técnico (com o não sei quê de pejorativo associado ao termo), um elemento utilíssimo na sua área específica, alguém sem o qual a empresa não começaria a existir, mas... de voo necessariamente limitado. A metafísica da gestão era território que lhe ficava vedado. O homem da economia, das finanças ou do direito – eram promovíveis. Os engenheiros, não - eram dados como demasiado terráqueos para se alcandorarem às altitudes rarefeitas da direção de empresas,. Pois bem, o nosso homem, responsável pela empresa referida, decidira que iria pôr fim a isso: os engenheiros iriam ter as mesmas possibilidades de ascensão pela escada hierárquica acima – até ao topo.
E, se assim o decidiu, melhor o fez. E os engenheiros começaram a subir... até chegarem a um nível bastante elevado. Porém, verificou-se algo de surpreendente: até determinado patamar (elevado, mas não o mais elevado de todos) os engenheiros iam-se de fato acomodando à desoxigenação das alturas. Porém, de aí em diante, sentiam-se inconfortáveis, deslocados: nem eles gostavam do lugar, nem o lugar gostava muito deles: não faziam bom trabalho e acabavam por decidir voltar para trás. Durante anos o responsável pela empresa (uma empresa importante, de dimensão internacional) bateu com a cabeça nas paredes, tentando perceber o que se passava: que faltaria aos seus engenheiros que lhes não permitia chegar ao topo? Que não tinham eles que deviam ter para se tornarem managing directors? Até que, ao fim de perto de, salvo erro, quinze anos de mágica no problema, fez-se-lhe luz: o que lhes faltava era , muito simplesmente, um bom bocado de cultura geral.
Custara-lhe chegar a uma conclusão que agora ofuscava, pela sua evidência, mas não tinha agora dúvidas: aquilo que a cultura geral dá – uma maior abertura de espírito, uma visão alargada dos comportamentos humanos, da complexidade do ser humano, da beleza, do conhecimento e do seu valor, dos incentivos que o homem valoriza, da complexidade dos relacionamentos, do apreço pelo prazer que a música e a literatura e a arte dão, para além do que ensinam, a descoberta de que “os escritores transformam os fatos que o mundo produz – pessoas, lugares e objetos – em experiências que sugerem significados” (1) – tudo isto dá a quem o possui um maior à vontade, uma maior fluência no comércio de todos os dias com os outros, seja no âmbito privado, seja no âmbito profissional. São vantagens que ajudam quando, no desempenho das suas funções, o engenheiro não tem que se confinar ao técnico, mas tem, sobretudo, que resolver problemas de relacionamento com os outros: de persuasão, de convicção na “venda” de uma ideia ou de um projeto, que em muito depende de uma avaliação correta do interlocutor, ou da empatia que se saiba construir e pode depender de uma súbita revelação de sintonia de gostos ou de valores...
É isto que o ensino das humanidades pode trazer, mesmo aos técnicos, aos empresários e aos economistas: estes últimos, em grande parte, responsáveis pelo economismo redutor que se tem estado a tornar no principal inimigo do espírito da universitas.
Vem aqui a propósito citar o nunca assaz citado Ortega y Gasset, que, no seu seminal Misión de la Universidad, diz isto, que deveria estar sempre na secretária e na mesa de cabeceira dos nossos ministros da educação e dos nossos reitores e empresários e alunos e pais de alunos: “A sociedade”, dizia o grande pensador e escritor espanhol, “necessita de bons profissionais – juízes, médicos, engenheiros – e para isso aí está a Universidade com o seu ensino profissional. Mas necessita, antes disso e mais do que isso, de assegurar outro gênero de profissão: a de mandar. Em toda a sociedade, manda alguém – grupo ou classe, poucos ou muitos -. E, por mandar, não entendo tanto o exercício jurídico de uma autoridade quanto a pressão ou influxo difusos sobre o corpo social. Hoje mandam nas sociedades européias as classes burguesas, a maioria de cujos indivíduos é profissional. Importa, pois, muito, àquelas, que estes profissionais, aparte a sua especial profissão, sejam capazes de viver e influir vitalmente, segundo a ocasião dos tempos. Por isso é inelutável criar de novo, na Universidade, o ensino da cultura ou ideias vivas que o tempo possui. Essa é a tarefa universitária radical. É isso que tem que ser, antes e mais do que qualquer outra coisa, a Universidade”.
É, de fato, esta tarefa radical que se impõe. É por isso que, mais do que estar a transformar os departamentos de humanidades em escolas de línguas, para os salvar de forma pífia, haveria que utilizar o saber dos seus docentes, no sentido de se poder ensinar aos alunos de todos os departamentos da Universidade aquele sistema de ideias vivas que o tempo possui e dá pelo nome de... cultura.
Num momento em que o número de alunos encolhe, a melhor maneira de aproveitar o corpo docente das humanidades é saber reconhecer que ele pode ser utilizado – e de modo radicalmente importante – a ensinar algo de fundamental aos alunos de física, de química, de engenharia, de... economia. E, já agora, e inversamente, não seria também má ideia que aulas de introdução à ciência e à filosofia fossem ministradas nos cursos de humanidades. É que a segregação das duas culturas não interessa a ninguém – e, hoje, menos do que nunca.
A proposta que aqui faço nada tem de utópico. É, bem pelo contrário, escandaloso que nada disto seja hoje parte rotineira da estrutura do ensino universitário. Aproveite-se o que se tem à mão – e dar-se-á aos profissionais da ciência e da tecnologia competências de que necessitam para, mais tarde, se sentirem relativamente confortáveis nos labirintos da vida e da... profissão.
Eugénio Lisboa
(1) Michael Meyer, The Bedford Introduction to Literature, St. Martin’s Press, New York, 1987, p. 4.
Publicado no blog De Rerum Natura
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